
Atualmente no Brasil, a Lei Maria da Penha é a principal responsável pela prevenção e proteção da vítima de violência doméstica, que com o tempo pode vir a se tornar um feminicídio - (crédito: Caio Gomez)
Nas últimas duas semanas, o número de feminicídios no Distrito Federal chamou a atenção: foram quatro mortes em apenas 11 dias. Com isso, o total de casos registrados em 2025 já chega a oito — o dobro do contabilizado até maio do ano passado. Os dados acendem um alerta preocupante de que, se a tendência se mantiver, o número de feminicídios deste ano poderá superar o registrado em 2024.
A promotora de Justiça de Violência Doméstica do Recanto das Emas, Jediael Ferreira, afirma que esse trágico registro exige reflexão. Segundo ela, é natural que, diante de números tão impactantes, surjam previsões sobre um possível aumento no índice de feminicídios ao longo deste ano. Por essa razão, é essencial voltar o olhar para aquilo que pode e deve ser feito para reverter essa tendência.
"O futuro desses números dependerá, sobretudo, da forma como a sociedade, o sistema de justiça, os profissionais da rede de proteção e a própria mídia — que desempenha um papel fundamental na conscientização pública — escolherão agir. O fortalecimento de mecanismos de prevenção e proteção às mulheres exige um esforço coordenado, contínuo e incessante", destaca Jediael Ferreira.
Para a especialista é fundamental que o sistema de justiça permaneça atento e sensível às nuances desses crimes, garantindo que casos de violência sejam devidamente tipificados e tratados com rigor e celeridade. Além disso, também é necessário que a sociedade, como um todo, abrace a causa da prevenção, questionando comportamentos tóxicos e promovendo uma cultura de respeito e igualdade.
"Se a resposta a esse triste cenário for firme, coordenada e eficaz, o que hoje aparece como um dado alarmante poderá se tornar um impulso renovador para a criação de estratégias mais protetivas e justas", alerta a promotora.
Atualmente no Brasil, a Lei Maria da Penha é a principal responsável pela prevenção e proteção da vítima de violência doméstica, que com o tempo pode vir a se tornar um feminicídio. Instituída no Brasil por meio da Lei nº 11.340, em 7 de agosto de 2006, ela passou a ser considerada uma das legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento da violência doméstica.
A lei estabelece que qualquer forma de violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos. Ela ampliou o conceito de violência, que passou a incluir, além da violência física, outros tipos, como a psicológica (ameaças, humilhações, manipulações), a sexual (forçar relações sexuais sem consentimento, mesmo dentro do casamento), a patrimonial (destruição ou retenção de bens, documentos e recursos financeiros) e a moral (calúnia, difamação e injúria). Assim, a mulher passou a ser protegida de diversas formas de agressão que antes não eram reconhecidas legalmente com a devida seriedade.
Outro avanço importante trazido pela Lei Maria da Penha foi a criação de medidas protetivas de urgência, que podem ser concedidas pela autoridade judicial de forma rápida e imediata, muitas vezes, sem a necessidade de audiência com o agressor. Entre essas medidas estão o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato com a vítima, de aproximação de familiares e testemunhas, bem como a suspensão do porte de armas. A lei também prevê que a mulher em situação de violência tenha acesso a uma rede de apoio e acolhimento, incluindo delegacias especializadas no atendimento à mulher, casas-abrigo, centros de referência com apoio psicológico, social e jurídico, e atendimento prioritário nos serviços de saúde e na Defensoria Pública.
A instituição das Varas Especializadas em Violência Doméstica também representou um avanço estratégico no atendimento às vítimas. Essas varas possibilitam uma atuação mais eficiente, sensível e técnica, com profissionais capacitados para lidar com as complexidades da violência de gênero. Além de permitir a aplicação ágil das medidas protetivas, o modelo especializado favorece a articulação entre Judiciário, Ministério Público, segurança pública, saúde e assistência social, fortalecendo a proteção integral à mulher.
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Como o agressor é preso ?
Considerando o caráter preventivo, a Lei permite o decreto da prisão preventiva do agressor pela prática de qualquer infração penal, inclusive, crimes como ameaça, independentemente da pena prevista ou da existência de medidas protetivas anteriores. Em certos casos, a atuação do Ministério Público também dispensa a representação da vítima, ampliando a autonomia do Estado na proteção da mulher.
O principal critério para a prisão é a existência de fatores de risco — como histórico de violência, ciúmes excessivos, não aceitação do término, acesso a armas, abuso de álcool ou drogas, e descumprimento de medidas protetivas.
A legislação estabelece um microssistema jurídico próprio, dissociado do Código de Processo Penal, permitindo uma resposta mais adequada à complexidade da violência doméstica. Assim, mesmo que o agressor seja primário, a prisão preventiva pode ser decretada quando outras medidas não forem suficientes para garantir a integridade física e psíquica da vítima.
Desafios da Justiça
Segundo Jediael Ferreira, a aplicação plena da Lei Maria da Penha ainda enfrenta desafios. Um dos principais obstáculos reside no fato de que, apesar da existência de varas, promotorias e delegacias especializadas, nem todos os profissionais envolvidos aprofundam seu conhecimento sobre os mecanismos de proteção oferecidos pela legislação. Essa falta de especialização pode resultar em interpretações equivocadas da lei e na subutilização de seus mecanismos.
Outro obstáculo é a ausência de integração entre os órgãos do sistema de justiça e os serviços de apoio psicossocial, o que prejudica uma atuação articulada e eficaz. Além disso, ainda há a resistência de parte dos operadores do direito em decretar prisão preventiva, mesmo diante do descumprimento de medidas protetivas, desconsiderando a recorrência e gravidade da violência de gênero.
Muitos profissionais também não compreendem completamente o ciclo da violência doméstica, ignorando que o agressor, em muitos casos, faz parte da rede emocional, social e financeira da vítima — o que torna o rompimento especialmente difícil. "Por isso, o apoio estatal precisa ser contínuo, sensível e incondicional, respeitando essa complexidade", afirma a promotora.
Ação articulada previne o pior
Na última sexta-feira, Jediael Ferreira foi homenageada pela Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) por sua atuação decisiva no resgate de uma mulher que havia sido sequestrada pelo ex-companheiro.
O caso ocorreu no dia 1º de abril, durante uma audiência virtual. A promotora, o juiz, o defensor público e servidoras da Defensoria Pública do DF e do Tribunal de Justiça do DF e Territórios perceberam que a vítima estava sendo coagida dentro de um carro pelo agressor.
Imediatamente, a PMDF foi acionada e, com o apoio do Policiamento de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid) e do Grupo Tático Operacional (Gtop 22), localizou o veículo na DF-457 e resgatou a vítima. O agressor foi preso em flagrante.
O episódio reforça a importância da articulação entre as instituições no combate à violência doméstica. Jediael destacou à imprensa que o sucesso da operação só foi possível graças à pronta resposta e à cooperação exemplar de todos os integrantes da rede de proteção à mulher, além da sensibilidade da Polícia Militar em mobilizar rapidamente os recursos necessários.