Diretor de escola no Cruzeiro transforma a vida de jovens em vulnerabilidade
Data de Publicação: 17 de dezembro de 2023 10:39:00 Conheça a história de Getulio Cruz, diretor do Cemi do Cruzeiro, que usa a arte como ferramenta para capacitar e inspirar estudantes do DF há quase 30 anos
Mariana Niederauer
Diretor do Centro de Ensino Médio Integrado (Cemi) do Cruzeiro, Getúlio Cruz tem uma trajetória premiada e reconhecida na educação. O trabalho como ator e diretor nos palcos também ganhou destaque e prêmios. "É a educação que forma, que faz uma - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)
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"É como em O Mágico de Oz: o melhor lugar do mundo é a sua casa, e a nossa casa é a educação." É com essa metáfora que o ator e professor de artes cênicas Getulio Cruz, 64 anos, resume a transformação que a educação significou em sua vida e que, por consequência, ele conseguiu levar para milhares de alunos que atingiu com o trabalho ao longo de mais de 25 anos. "É a educação que forma, que faz uma nação ser competitiva, educada, com sensibilidade política e econômica", resume o mestre.
Ele atribui a esse potencial o resgate de algumas das gerações que passaram pelas salas onde ministrou aulas ou que comandou nos vários cargos de gestão. Servidor público da Secretaria de Educação do DF desde 1997, ele começou a carreira no Centro de Ensino Fundamental 308 de Santa Maria Sul, um primeiro grande desafio para o paraense recém-formado docente.
A violência era constante na região. As aulas ocorriam debaixo de poeira, na seca, ou em meio à lama, no período de chuvas. "À tardinha, começava o tiroteio. Todos os alunos ficavam debaixo das carteiras. Era muito difícil", relembra. "Fomos construindo um trabalho dentro dessa escola. Lá, eu criei o primeiro grupo de teatro, chamava-se Liberdade e Expressão. E conseguimos reverter esse processo de violência", afirma Getulio. Aos poucos, ficou para trás o turno da fome, como eram chamados os intervalos entre as aulas.
Getulio foi convidado pela Fundação Athos Bulcão para participar do Festival Teatro na Escola. "Levei os alunos que nunca tinham pisado em um teatro para fazer teatro lá no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil)", orgulha-se. Foi o primeiro de muitos festivais. "De lá, saíram muitos alunos que hoje são formados, são doutores, advogados, cuidaram da própria vida, com base no teatro. Não viraram artistas necessariamente, mas viraram bons profissionais."
Desafios na origem
Nascido em Marabá, no Pará, Getulio conheceu realidade semelhante à de boa parte de seus alunos muito cedo. "Não foi bem uma infância feliz. Logo aos 6 anos de idade, houve a separação de meus pais. E aí, minha mãe teve de migrar para para Imperatriz, no Maranhão, com os sete filhos. Começamos a viver um sofrimento muito grande. Ela teve trabalho demais para sustentar esses sete filhos. Trabalhando na costura, como empregada doméstica", elenca o professor. "Ela já não tinha muito como suportar e distribuiu esses filhos a parentes. Eu fui morar em Santo Antônio, na época era Goiás; agora, Tocantins. Morei com tios. Foi onde tive a minha educação, onde me prepararam para ser alguém."
Getulio deixou a cidade aos 16 anos para reencontrar a mãe em Imperatriz, assim como os seis irmãos. Lá, durante o ginásio — equivalente, hoje, ao ensino médio —, despertou para o teatro sob a influência do diretor Pedro Hanaye. O primeiro trabalho foi inspirado na história bíblica de Adão e Eva. "Ali, eu descobri o que seria da minha vida, e aquilo me despertou para viajar pela arte", conta.
Getulio se uniu a um grupo de jovens e ajudou a fundar o primeiro teatro da cidade, o Príncipe Teatro de Imperatriz, que não está mais em funcionamento. "Tomei gosto pela coisa e, de lá para cá, comecei a estudar teatro", relata Getulio, que não parou de se atualizar nem de atuar. Os primeiros cursos ele fez em São Luís, com grandes nomes, como Tácito Borralho e Aldo Leite. Ao voltar para Imperatriz, sentiu-se sufocado, distante do potencial que sentia ter. "Eu queria mais, e aí migrei para Brasília."
Na cidade-avião
"Vim para Brasília em 1979. Tudo aqui estava em fase de princípio, inclusive o teatro. Tenho orgulho de dizer que fiz parte da construção teatral dessa cidade", afirma Getulio, que participou dos grupos Metacentro e Mensagem, além do grupo de teatro Comédia de Brasília, entre outros. Foi também na nova capital que o professor viveu outro encontro memorável, na condição de aluno. Era a terceira turma da Faculdade Dulcina de Moraes e ela própria lecionava na instituição pioneira.
Sobre a atriz, que é hoje reconhecida como heroína da pátria, ele resume: "Ela representou muito para o Brasil e para Brasília. Não era uma professora convencional. Era uma atriz que, através das suas experiências, dava aulas. Chegava, começava a falar da própria criatividade, do seu trabalho, do seu potencial, da sua companhia de arte, e dava essas experiências para que a gente aprendesse a lidar com o teatro".
A potência de Dulcina foi além do ensino da arte. O pioneirismo da artista permitiu a seus pupilos uma alternativa para a empregabilidade, e contribuiu para a expansão do repertório cultural de toda a cidade. "A partir da hora que Dulcina institui a sua faculdade e torna a arte cênica acadêmica, procura-se desenvolver isso nas escolas, para que entrasse para a grade curricular", detalha Getulio.
Mais uma batalha travada pelos pioneiros do teatro em Brasília, que permitiu, após discussões no Congresso Nacional, que as artes — visuais, cênicas e a música — passassem a compor as disciplinas obrigatórias nas escolas. O jovem Getulio saiu da faculdade com o diploma de bacharelado na mão e outro caminho profissional possível para trilhar. Depois, complementou a formação com o curso de licenciatura e foi aprovado no concurso para a Secretaria de Educação. Hoje, ele integra o Conselho Curador da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
"Eu descobri que, através da arte de representar, eu poderia também adquirir o conhecimento para ser professor; e, antes de tudo, para ser um professor, é preciso que você goste do que faz. E é o que eu mais gosto de fazer: dar aula. Hoje, estou na parte de direção administrativa, mas sem perder esse pensamento de que a escola é o melhor lugar do mundo."
Nova jornada
Até um certo ponto, Getulio alimentou o sonho de ter a profissão de ator como única carreira. Foi ao Rio de Janeiro, participou de testes e passou em alguns. Mas a realidade do menino filho de mãe solo, nascido no interior do Pará, se impunha. "Eu sou arrimo de família. Não poderia abandonar meus irmãos todos, que dependiam de mim", afirma.
"Mas, de certa forma, a arte não saiu de mim. Eu sou um professor de artes cênicas. Fiz mestrado na Universidade de Brasília (UnB) em artes cênicas", detalha o professor, que até hoje não deixa de fazer trabalhos como ator. No currículo, acumula atuação, roteiro, produção e direção em vários espetáculos de teatro, e a participação em dois longas e dois curta-metragens.
A chegada à escola atual, o Centro de Ensino Médio Integrado (Cemi) do Cruzeiro, há nove anos, foi também desafiadora. À época, a unidade de ensino recebia estudantes da Estrutural. Estigmatizada pela proximidade com o antigo lixão, a comunidade que vinha estudar em uma das primeiras escolas do Plano Piloto sofria preconceito e reproduzia, na escola, as violências extramuros.
A gestão do então Centro Educacional convidou Getulio a implantar por lá o mesmo projeto de teatro que havia alcançado ótimos resultados em Santa Maria. O professor assumiu, assim, o desafio, e mais uma vez incluiu as turmas no projeto em parceria com a Fundação Athos Bulcão. "Foram mais de 400 alunos tirados das ruas e colocados numa profissão, não necessariamente artistas, mas em vários outros segmentos. Hoje, eu encontro enfermeiros, médicos, atores. Formou-se até um núcleo dentro da escola, que se transformou em um grupo chamado Cutucart, que hoje são profissionais empreendedores da arte", conta Getulio, lembrando de vários dos alunos que alcançaram o sucesso. O grupo de teatro gestado na escola foi, inclusive, o tema de sua dissertação de mestrado.
"Isso me deixa muito grato, porque o que me despertou no teatro eu consigo passar para frente, como conhecimento, como ideia e como legado. Hoje, tenho orgulho de vê-los formados", celebra o diretor do Cemi do Cruzeiro. Getulio foi conduzido ao cargo máximo da escola por duas vezes, escolhido pela comunidade escolar.
O processo de transformação da escola em Centro de Ensino Médio Integrado, para atender apenas a estudantes do ensino médio e com foco profissionalizante, também teve participação essencial de Getulio. À época, em 2014, ele era vice-diretor e articulou a mudança que fez com que a unidade de ensino se transformasse em escola técnica, com oferta de informática para a internet. Além da mudança formal, o gestor conseguiu a expansão de 12 para 14 salas de aula e a instalação de 40 computadores.
Próximas gerações
"Tenho 27 anos de magistério, formando jovens, tirando da rua, das drogas, da violência", continua o professor, feliz por ter tido a oportunidade de dar outros rumos para muitos de seus alunos. "Certa vez, vi uma mãe dizer: 'Meu filho está no jornal, mas não é na página policial. Ele está na página de Cultura'", recorda-se.
Em reconhecimento à contribuição para a cidade, Getulio Cruz foi agraciado duas vezes com moção de louvor concedida pela Câmara Legislativa do DF. A filha, Izabella, seguiu os passos do pai e tornou-se professora. Ao lado da mulher, Jandira Moreira, ele conseguiu ajudar a todos os irmãos. A maior parte veio morar em Brasília.
A sala de trabalho no Cruzeiro tem duas portas. Ambas ficam abertas quase todo o tempo, e as visitas de professores, estudantes e outros funcionários são constantes. Getulio é pop no Cemi e também pelas ruas de Brasília, onde, vez ou outra, encontra um ex-aluno. "Acho que não vou parar. Continuarei fazendo o meu trabalho, a minha parte. Isso me orgulha muito."
Os projetos continuam a todo vapor. Depois da reforma do auditório, agora a meta é entregar um projeto de paisagismo, para tornar o ambiente mais acolhedor. "Nós vamos, através da educação, resgatar tudo o que foi perdido, que está sendo perdido. Só através da educação nós conseguiremos isso, e me faz muito feliz participar desse processo."
Espetáculo premiado
O espetáculo Seca, dirigido por Getulio e produzido pelo grupo Cutucart, gestado no Cemi do Cruzeiro, recebeu cinco prêmios no Festival Luz, Palco, Ação, em São Paulo, em 2010; e mais três em outros dois festivais em 2011 e 2014. “No sertão nordestino o silêncio dita a tristeza de uma mulher que luta para não ser igual a tudo o que está ao seu redor. Uma batalha que ela trava consigo mesma e com o frio marido que a trata como um deserto. Dois garotos trazem esperança e alegria para ela, mas para ele são apenas mais dois. Os quatro são aquele lugar”, diz a sinopse do espetáculo.
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