Javier Milei toma posse com desafio de mudar a economia da Argentina
Data de Publicação: 11 de dezembro de 2023 07:37:00 Em seu primeiro ato como presidente, ultralibertário descarta fala aos legisladores, discursa de costas para o Congresso, ataca o peronismo, declara luta à inflação e elimina nove ministérios
Rodrigo Craveiro
Ao tomar posse como o 12º presidente da Argentina, no 40º aniversário da retomada da democracia, o ultralibertário Javier Milei, 53 anos, traçou um panorama desolador da situação financeira do país, culpou o peronismo pelo desastre econômico e anunciou que tomará medidas de ajuste fiscal. "O populismo nos arruinou. Deixou-nos com 45% de pobres e 10% de indigentes. (...) Tenho que dizer a vocês: não há dinheiro. Não há alternativa ao ajuste. Não há alternativa ao choque", declarou em seu primeiro discurso como chefe de Estado, minutos depois de receber a faixa presidencial das mãos do agora ex-presidente Alberto Fernández. Não perdeu tempo e lançou mão da "política da motosserra": assinou o primeiro Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), reduzindo de 18 para nove o total de ministérios.
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"Vamos tomar todas as decisões necessárias para resolver o problema causado por 100 anos de desperdício da classe política", prometeu Milei, em seu discurso, ao preparar a população para as dificuldades. "No curto prazo, a situação vai piorar. Mas, depois, veremos os frutos do nosso esforço, ao criarmos as bases de um crescimento sólido e sustentável com o tempo. (...) Os desafios que temos são enormes", admitiu, ao diagnosticar o quadro da economia como "crítico". "Esse é o legado que deixam para nós: uma inflação plantada de 15.000% ao ano", denunciou Milei.
Entre os convidados de honra na posse, estavam o ex-presidente Jair Bolsonaro; os presidentes Volodymyr Zelensky (Ucrânia), Santiago Peña (Paraguai), Gabriel Boric (Chile); o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán; e o rei Felipe VI da Espanha. O governo brasileiro esteve representado pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.
A cerimônia foi marcada pela quebra de protocolos. Ao contrário do que se esperava, Milei não fez nem sequer um breve pronunciamento dentro do Congresso. Após receber a faixa presidencial e o bastão das mãos de Alberto Fernández, deixou a sede do Legislativo e, de costas para o prédio, discursou para a multidão.
No entanto, Milei seguiu à risca o cerimonial quando jurou "por Deus e pelo país sobre esses santos Evangelhos". A posse do gabinete ministerial ocorreu longe dos holofotes, sem câmeras de televisão e sem a presença de jornalistas, algo que destoou dos últimos presidentes. Mais tarde, a primeira foto de Milei e seus ministros, na Casa Rosada, vazou e acabou divulgada pela imprensa.
O discurso de posse não surpreendeu Mara Pegoraro, cientista política da Universidad de Buenos Aires (UBA), para quem o tom adotado pelo presidente foi o mesmo visto durante a campanha. "O que mais me impactou é o fato de a Argentina ter completado, neste domingo, 40 anos de retorno democrático. O presidente Milei não mencionou, nem uma única vez, a palavra 'democracia'. Houve alusão à Constituição, mas de maneira muito genérica, buscando citar apenas a tradição liberal", afirmou ao Correio, por telefone. "Por várias vezes, o presidente alertou o povo que o que está por vir é um ajuste fiscal tremendo. Foi surpreendente ver a multidão aplaudir a declaração de ajuste."
Governabilidade
De acordo com Pegoraro, não está claro quais serão o plano econômico efetivo que Milei levará adiante e a viabilidade de tudo o que ele quiser fazer. "Todas as decisões que o presidente tomar deverão ser aprovadas pelo Congresso. Nesse ponto, parece-me que o discurso deixa sinal de preocupação: ele disse que, aquilo que não puder aprovar por lei, o fará de qualquer outro modo. Há uma ameaça a ser considerada." Em relação à eliminação de nove ministérios, primeira medida tomada pelo ultralibertário, a especialista vê um alinhamento de Milei com as promessas de campanha. "Não há surpresas nem mentiras. Milei não vendeu uma ilusão nem trocou de manual. A redução de ministérios é uma mensagem de que está disposto a cumprir com tudo o que prometeu. A capacidade de êxito dependerá da governabilidade."
Por sua vez, Damian Deglauve — analista da DED Consultoria Politica (em Buenos Aires) — acredita que Milei buscou apaziguar as medidas e a crise econômica que se aproxima. "Ele tentou deixar claro que previu as dificuldades, alertou sobre as mesmas, e que a culpa é do governo de Alberto Fernández. A questão é ver até que ponto o seu eleitor não cativo resistirá a esse ajuste", disse à reportagem. Ele recordou que, durante a campanha, Milei se comprometeu com uma solução "mágica" e rápida para os problemas da Argentina. "É preciso ver como essas medidas impactarão a sociedade. Se a crise for muito grave, a situação ficará bastante complicada", advertiu Deglauve.
Para o também argentino Carlos Fara, especialista em opinião pública e comunicação de governo, Milei buscou marcar a herança política e os cem anos de decisões econômicas equivocadas. "Tudo isso, aliado ao momento em que ele citou a época em que a Argentina foi uma potência, aponta para uma retórica nacionalista. Acho que ele será obrigado a divulgar medidas urgentes, como um pacote cambial", afirmou ao Correio.
TRECHOS / O primeiro discurso como presidente
"Hoje começa uma nova era na Argentina. Hoje, damos por terminada uma longa e triste história de decadência e declínio, e começamos o caminho da reconstrução do nosso país."
"Os argentinos, de maneira contundente, expressaram uma vontade de mudança que não tem retorno. Não há volta. Hoje, enterramos décadas de fracasso, de brigas internas e de disputas sem sentido."
"Durante mais de 100 anos, os políticos insistiram em defender um modelo que somente gera pobreza, estagnação e miséria. Um modelo que considera que os cidadãos existem para servir a política, e não que a política existe para servir os cidadãos."
"Nenhum governo recebeu uma herança pior do que a que estamos recebendo. Em seus primórdios, o kirchnerismo se vangloriava de ter excedentes gêmeos; isso é: superávits fiscal e externo. Hoje, nos deixa com deficits gêmeos de 17 pontos percentuais do PIB."
"Esse é o legado que deixam para nós: uma inflação plantada de 15.000% ao ano, que vamos lutar com unhas e dentes para acabar."
"Não existe solução alternativa ao ajuste (fiscal)."
"Infelizmente, devo dizer novamente, não há dinheiro."
"Em matéria social, estamos recebendo um país onde metade da população é pobre, com o tecido social completamente rompido. Mais de 20 milhões de argentinos não conseguem ter uma vida digna, porque são prisioneiros de um sistema que só gera mais pobreza."
"Nós avançaremos nas mudanças de que o país necessita porque temos a certeza de que abraçar as ideias de liberdade é a única forma de conseguirmos sair do buraco em que fomos colocados."
"Deus abençoe os argentinos e que as forças do céu nos acompanhem neste desafio. Muito obrigado. Será difícil, mas vamos conseguir. Viva a liberdade, caralho! Viva a liberdade, caralho! Viva a liberdade, caralho!"
BASTIDORES
O dedo do meio de Cristina
Durante a chegada ao Congresso da Nação Argentina, a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner foi vaiada por simpatizantes de Javier Milei. A senadora e ainda então vice-presidente retribuiu com um gesto grosseiro. Sem virar as contas, La Reina Cristina ("A Rainha Cristina"), como é conhecida, mostrou o dedo do meio para os críticos e continuou caminhando. A imagem foi flagrada pela televisão pública da Argentina.
Anfitriã por força do protocolo
Cristina Kirchner não teria assumido essa tarefa por livre e espontânea vontade. Coube à presidente do Senado aguardar Milei à porta do prédio do Congresso e conduzi-lo até o plenário para a cerimônia de posse. Não sem antes apresentar-lhe os senadores do corpo diretivo da Casa. Tentou ser simpática por duas vezes: quando Milei assinou o Livro de Honra e ao mostrar curiosidade sobre o desenho do bastão presidencial.
"¡Viva la libertad, carajo!"
A frase escrita por Javier Milei no Livro de Honra do Congresso é quase um slogan de campanha e foi com ela que ele encerrou o discurso de posse de quase 30 minutos, repetindo-a por três vezes. "¡Viva la libertad, carajo!" ("Viva a liberdade, caralho!"), escreveu o ultralibertário, minutos antes de se tornar presidente. Por sua vez, a vice Victoria Villaruel deixou registrada no livro a frase: "Tudo pela Argentina, Victoria".
Surpresa na escolha do bastão
Até mesmo o ourives Adrián Pallarois, responsável pela confecção do bastão presidencial que seria usado por Milei, ficou surpreso. "Por amor de Milei aos seus cães, ele decidiu usar outro bastão. Foi inesperado. Respeito profundamente a decisão do presidente de escolher o que acha conveniente. É parte do exercício da liberdade", disse Pallarois ao Correio. No topo do bastão, estão talhados os cinco cães clonados por Milei: Conan, Murray, Milton, Robert e Luca.
O novo "palco" para Zelensky
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, recebeu um abraço de Milei e tapas nas costas. A ida de Zelensky a Buenos Aires ocorre no momento em que a invasão russa ao seu país é ofuscada pelo Oriente Médio. Zelensky contou com forte aparato de segurança, que incluiu tanquetas.
EU ACHO...
"Para governar sem apoio do Congresso, o presidente poderá emitir decretos de necessidade e urgência em muitas matérias. Ele contará com recursos extraordinários, nesse sentido. Ao discursar para a praça, e não para o Congresso, como marca a tradição, Milei dá as costas não à intituição do Legislativo, mas à casta política. Milei também segue uma estética de imitar a posse presidencial nos Estados Unidos."
Mara Pegoraro, cientista política da Universidad de Buenos Aires (UBA)
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